A pandemia imperou uma mudança de paradigmas, modos de pensar e também de agir, relativamente aos nossos hábitos e rotinas. Se por um lado, estar próximo ganhou um outro significado, também a necessidade de repensarmos as nossas escolhas, principalmente alimentares, em prol da nossa saúde – e também do meio ambiente – poderá ter suscitado ainda mais o interesse para explorar novas tendências alimentares, como o veganismo.
Numa altura em que ainda se levantam muitas questões acerca da base do veganismo ou que alimentos é que esta opção alimentar inclui, Fábio Gomes compilou as suas melhores receitas veganas, práticas e deliciosas, para “bem receber” e surpreender à mesa. No seu novo livro, Vegan Fácil para Bem Receber, o autor procurou, através de métodos simples e descomplicados, desmistificar o veganismo e facilitar a transição para esta opção alimentar.
Não fosse a urgência climática, por si, razão mais do que suficiente para isso, deveríamos também olhar para o modo como, enquanto espécie, estamos a tratar as outras.
Gostaríamos de começar esta entrevista por conhecer um pouco do percurso profissional do Fábio. Como é que de uma área como a Publicidade e, posteriormente, a realização chegamos ao mundo da escrita?
É um percurso bastante natural, uma vez que tanto a Publicidade como a realização vivem de planeamento e, sobretudo, de guiões. A escrita está constantemente presente, todas as peças que fazemos nestas profissões começam por serem criadas em papel antes de tomarem a sua forma final, daí que o conceptualismo e a escrita ocupem uma boa parte da minha vida. Idealizar e concretizar um livro, tanto na sua componente visual como textual, foi-me bastante espontâneo e intrínseco, como algo que simplesmente precisava de sair do meu interior.
O que é que despertou mais interesse para se dedicar à escrita?
Foi toda uma conjugação de fatores. Sempre fui um bom leitor e sempre escrevi, mas até há pouco tempo nunca tinha pensado em levar essa vertente ao nível da publicação. Com o veganismo e a inspiração pela causa, ganhei motivação para o fazer.
Mergulhando no mundo da alimentação vegan, o Fábio sempre manteve esta preferência alimentar ou quando é mudou a sua alimentação?
Posso dizer que ao longo da minha vida, principalmente da minha vida adulta, tinha uma alimentação quase “tradicional”, muito baseada em carne, enchidos, peixe, queijos. Consumia muitos poucos vegetais e houve mesmo uma altura em que tive carência de fibras. Mudei a minha alimentação no início de 2017, após ter sentido a necessidade de saber mais sobre as alterações climáticas e o papel que a indústria agropecuária tinha no aquecimento global. Acabei, não só confrontado com crimes contra o planeta, mas também com todo o sofrimento que é infligido a várias espécies de animais. Foi algo que me perturbou profundamente e desde esse mesmo dia fui incapaz de, sequer, voltar a pensar em consumir produtos de origem animal. A associação que a minha mente criou em relação a isso é tão forte que há mesmo repulsa só de pensar em voltar a ingeri-los.
Como é que se adapta o organismo a esta mudança? Que considerações são importantes ter em conta para quem procura o mesmo?
Apesar de a minha mudança ter sido muito repentina, o meu organismo adaptou-se extremamente bem e sinto-me hoje mais saudável que nunca. Sinto-me mais leve, mais enérgico. Não voltei a ter sensações de mal-estar após as refeições. A nível mental, desenvolvi uma clareza de pensamento que nunca tive e que me levou a alcançar feitos que nunca achei possíveis, como escrever dois livros de receitas. Já no meu círculo, o feedback que tenho recebido é também bastante positivo. O conselho que dou é comer com variedade e moderação, o que na realidade é válido para qualquer tipo de alimentação. Saliento que é sempre muito importante fazer exames regulares, de seis em seis meses, para controlar os níveis nutricionais. Mesmo que alguns baixem, sobretudo o da B12, existem atualmente muitos suplementos, de preferência naturais, que poderão colmatar as carências. Isto é válido para vegans e não vegans, uma vez que podem existir carências seja qual for a nossa escolha alimentar. A quem tem problemas de saúde, ou apenas dúvidas, recomendo que consulte um médico ou um nutricionista, de preferência especializado em vegetarianismo ou veganismo, antes de enveredar por uma alimentação vegan.
Dada a oferta de produtos alimentares vegan que existe atualmente, considera que é fácil qualquer pessoa adotar esses hábitos?
É cada vez mais fácil e até mesmo recompensador adotar hábitos alimentares vegan. O veganismo está numa tendência bastante positiva e são cada vez mais as empresas, empreendedores e produtores que se dedicam a esta tipo de alimentação. Todos os anos saem inúmeros novos produtos no mercado, sobretudo dedicados a quem quer recuperar os seus sabores de sempre: queijos vegan, hambúrgueres vegetais, leites à base de plantas, chocolates sem lacticínios. São apenas alguns exemplos que começam a ganhar cada vez mais espaço nas prateleiras do supermercados e facilmente acessíveis. Também ao nível da restauração surgem regularmente novos espaços somente dedicados ao veganismo, enquanto que noutros os proprietários e chefs estão cada vez mais conscientes da necessidade de incluírem opções à base de plantas nas suas ementas. A nível individual, há uma grande afluência de bloggers, autores e chefs, incluindo celebridades, a desenvolver e publicar novas receitas. É um momento muito positivo e que vai ainda melhorar bastante. Estamos apenas no início.
Numa altura em que o veganismo é cada vez mais abordado, considera que ainda pouco se sabe sobre as bases da alimentação vegan ou as pessoas já estão mais informadas?
Da minha experiência encontro bastantes pessoas, infelizmente, mal informadas, que consideram o veganismo uma restrição alimentar e que, portanto, muito pouco ou nada sabem sobre as suas bases e até possibilidades. O lugar-comum que mais oiço é aquele em que “um vegan se alimenta exclusivamente de saladas” ou o daquela pessoa que acredita “ser a única no mundo incapaz de abdicar do queijo”. Mas existe bastante informação para quem a queira encontrar, apenas não é veiculada pelos meios de comunicação social que mais facilidade têm em alcançar as massas. A nível governamental, não há campanhas de sensibilização, nem de educação sobre os benefícios de uma alimentação à base de plantas e da sua importância para o planeta. Não se associa a indústria agropecuária como principal causadora das alterações climáticas. Não se associam os incêndios na Amazónia à criação de gado para consumo. Praticamente ninguém refere o risco de extinções em massa que os nossos oceanos correm, extinções derivadas da pesca intensiva e do aquecimento global. No polo contrário, há muitos lóbis que financiam campanhas e influenciam instituições, como é o caso recente da União Europeia querer investir 7,5 milhões de euros para que os jovens comam mais carne de porco. São estes mesmos lóbis e indústrias que influenciam a nossa roda dos alimentos e criam a desinformação logo nos anos escolares. Somos manipulados desde crianças e crescemos sem duvidar da realidade por detrás da nossa alimentação. Como combater algo assim? É a força e determinação de pessoas excecionais – da comunidade vegan, da comunidade científica, dos defensores dos direitos dos animais, dos ativistas contra as alterações climáticas, entre outros – que têm enfrentado estes Golias e, contra todas as probabilidades, trazido a verdade ao de cima. Felizmente, as gerações emergentes são menos dependentes dos órgãos de comunicação tradicionais e mais conscientes do planeta que estão a herdar, pelo que se vê uma maior adesão ao veganismo entre os jovens.
Quando folheamos o seu livro, deparámo-nos com uma introdução que foi redigida precisamente durante o período de estado de emergência. Nessa mesma introdução, podemos ler: “Ninguém ousa assumir a verdade: no fundo, a responsabilidade não é apenas de indivíduos e instituições, mas do ser humano enquanto consumidor de animais”. Esta “verdade inconveniente” poderá chamar (ainda mais) a atenção para a importância do veganismo nos próximos tempos?
Por mais inconveniente que uma verdade seja, ela acaba sempre por vir ao de cima e acabamos por ter de lidar com ela, quer queiramos quer não. Vimo-lo acontecer: desde a chocante realidade dos wet markets na China ao facto de as últimas grandes epidemias e pandemias terem sido originadas por agentes patogénicos presentes nas carnes para consumo. Temas que viviam abafados até não ser mais possível. Certamente que todo este período conturbado tem chamado a atenção para a importância de reduzirmos o consumo de carne e, consequentemente, exposto a importância do veganismo, mas vejo que a maior parte das pessoas, por mais preocupadas que estejam, nada fazem por mudar. É mais fácil apontarmos os dedos aos governos, às instituições ou até mesmo aos líderes e exigir-lhes uma mudança, como tem acontecido durante esta pandemia, mas não é assim que a mudança se dá. A mudança dá-se quando um número suficiente de indivíduos toma uma ação de acordo com um ideal, por mais pequena e insignificante que esta ação possa ser e parecer. À soma de todas essas ações, em simultâneo, chama-se uma revolução. Acredito que teremos a nossa revolução verde, mas, para isso, teremos todos de começar por aplicar pequenas mudanças no nosso quotidiano. Reduzir a ingestão de produtos animais é a primeira dessas ações.
O que é que procurou explorar neste livro? Podemos encarar como uma premissa para desmistificar a ideia de que comer vegan é “difícil”?
Sim, o propósito do livro é precisamente esse. Falei com muitas pessoas que gostariam de reduzir ou deixar os produtos de origem animal, mas que não sabiam como conseguir ou que ingredientes usar. O estilo de vida acelerado e ocupado que temos atualmente também não contribui, afinal de contas ninguém quer complicar muito na cozinha após um dia de trabalho e se estivermos a transitar para o veganismo é muito fácil optarmos por algo com que estejamos já familiarizados e deixar de lado o prato à base de plantas. O livro assume-se assim como uma ferramenta para o dia a dia: desmistifica a dificuldade do veganismo, facilita a transição para este tipo de alimentação e simplifica o quotidiano aos leitores.
Tal como o título sugere, percebemos que é um livro que se destina à partilha, ao convívio e à união à volta de uma mesa. São sempre momentos especiais para o Fábio?
São os momentos à volta da mesa com aqueles de quem mais gosto que geram algumas das minhas memórias mais queridas. Quando nos sentamos à mesa estamos ali uns para os outros, é um momento de conexão, um momento muito puro e profundamente humano, remanescente das tribos que se juntavam à volta da fogueira, onde partilhamos ideias e contamos histórias. Como digo no livro, cozinhar é um ato de amor e é com esse mesmo amor que cozinho para os meus familiares e amigos. Esta temática ganhou ainda mais importância durante a quarentena, quando subitamente fomos impedidos de estar uns com os outros.
Agora que o livro está ao alcance de todos, quais são os próximos planos? O que é que gostaria de ainda vir a explorar?
A causa vegan é extremamente importante para mim e os livros de receitas fáceis são uma forma que encontrei de participar na mudança que os animais e o nosso planeta precisam. Se o meu livro ajudar uma pessoa que seja a deixar os produtos de origem animal, já terá cumprido a sua missão. Mas com dois livros publicados em dois anos sinto que é altura de descansar um pouco, apesar de já ter ideias para novos livros e de tencionar continuar a publicar ocasionalmente receitas novas através do meu site.
Posto isto, provavelmente irei dedicar-me um pouco à escrita de ficção. Escrevi há pouco tempo um conto que retratava o abandono de um animal durante a quarentena e sinto que há muito para dizer, tanto sobre essa como sobre outras temáticas, de um modo que pode ser bastante construtivo. Veremos o que o futuro nos traz.