Eunice Maia é a fundadora da Maria Granel, a primeira zero waste store em Portugal, que se apresenta como uma mercearia biológica – como o nome suscita – a granel e uma loja de venda de produtos sustentáveis. Aqui tudo é pensado ao pormenor, com o intuito de diminuir ao máximo o desperdício alimentar e a consequente pegada ecológica, sob a premissa de estimular continuamente uma mudança positiva de hábitos de consumo.
Tal como a fundadora nos conta, também a missão assumida pela Maria Granel incentivou uma mudança da sua forma de pensar e organizar a rotina, relativamente a hábitos de consumo e práticas diárias que reduzem o desperdício alimentar (dentro e fora de casa), propondo um olhar crítico face às consequências que o seu estilo de vida provoca na natureza. Baseada na sua experiência pessoal, Eunice passou para o papel todos os ensinamentos que conduziram a uma revolução assertiva de costumes, práticas e conceitos, em prol de um estilo de vida mais sustentável, saudável e feliz.
No âmbito do lançamento do seu primeiro livro, Desafio Zero, falamos com a autora, na intenção de conhecermos melhor este guia prático e essencial para uma vida melhor.
Gostávamos de começar esta entrevista por conhecer o que mudou desde a nossa última conversa (pode recordar a mesma aqui). Na altura, a Maria Granel dividia-se em dois espaços (um em Alvalade, outro em Campo de Ourique) e já teria vários acessórios plastic free à venda, para além dos inúmeros produtos alimentares da mercearia a granel. O que é que mudou desde então? O que é que veio complementar ainda mais o universo da Maria Granel?
Para além dos espaços físicos e da loja online, temos também um programa educativo ambiental a decorrer, o Programa Z(h)ero, para adoção de pequenos gestos que possam reduzir o desperdício em escolas e empresas. E lançámos (neste caso, lancei) um livro, o Desafio Zero, que, na verdade, é a tradução para o papel das aprendizagens em comunidade que fomos fazendo ao longo destes anos. É um guia prático, partilhado com as pessoas, para que, juntos, possamos fazer a diferença. No contexto desta pandemia, estamos perante uma altura em que os alimentos biológicos fazem ainda mais sentido, sendo que, para garantirmos o acesso facilitado aos nossos produtos, reduzindo o risco de exposição e de contágio, avançámos para as entregas ao domicílio e para a expedição via CTT Expresso.
O compromisso de sustentabilidade continua a liderar todas as decisões na Maria Granel? De que forma continuam a estimular a adoção de hábitos mais conscientes?
Sempre, é a bússola da nossa atuação e da nossa missão. Tudo na loja está pensado para facilitar, por parte de quem nos visita, a adoção de gestos mais conscientes, seja pelo facto de a aquisição a granel implicar uma planificação (perceber que quantidade de produto é realmente necessária), seja pelo esforço na seleção dos produtos, que obedece a critérios rigorosos (certificação bio, qualidade, origem, embalagem), seja ainda pela curadoria de acessórios plastic free que temos em portefólio ou pelos workshops que dinamizamos e que dão ferramentas práticas às pessoas nas mais diversas áreas (alimentação, decoração e estilo de vida) para manterem opções sustentáveis.
No momento da nossa última conversa, a Eunice partilhou que teria surgido a oportunidade de conhecer a fundadora do movimento internacional Zero Waste, tendo inclusive convidado a Bea Johnson para vir a Portugal e ainda contribuindo para a tradução do seu livro, com um prefácio da sua autoria. Os papéis inverteram-se e agora é Bea Johnson a compor o prefácio deste novo livro da Eunice. Faria todo o sentido que assim fosse? Qual é a ligação deste livro com o movimento internacional e também com a Bea?
Eu ainda nem acredito que a Bea (Johnson) escreveu o prefácio do livro. É uma honra enorme, porque a Bea é a fundadora, a mãe, a matriz deste estilo de vida. Devo-lhe muito, desde a inspiração para o conceito da loja à revolução que a minha vida sofreu. Por isso, fazia todo o sentido que assim fosse. Só não sabia que seria possível, mas foi. O livro enquadra-se nesse contexto internacional do movimento Zero Waste e, ao mesmo tempo, traduz uma realidade muito nossa (faço referência a projetos, a aplicações e a pessoas nacionais). Além disso, conto também com a participação do Rodrigo Sabatini e da Maria Knapp, dois especialistas brasileiros que fazem a ponte atlântica, comprovando a abrangência e a relevância deste movimento hoje em todo o mundo.
O que é que a motivou para explorar esta temática e incentivar a redução do desperdício, dentro e fora de casa?
Sem dúvida que a missão da Maria Granel contagiou a minha própria vida. Para além desse relato, desse testemunho na primeira pessoa da minha jornada lenta, longa e imperfeita, o livro é também um guia prático, cheio de sugestões, dicas e receitas, para ajudar as pessoas reduzir o desperdício. Está dividido em quatro partes, para que os leitores possam construir o seu próprio itinerário de leitura, de acordo com as áreas em que faça mais sentido atuar: dentro de casa (divisão a divisão) fora de casa, em comunidade e construção da “cidade zero waste”.
Podemos encarar que é um verdadeiro convite à reflexão. Era esse o seu objetivo? Levar as pessoas a avaliar e a readaptar os seus hábitos em prol da sustentabilidade e da redução do desperdício alimentar?
Obviamente, a sustentabilidade vai muito além da questão dos resíduos e da adoção de um estilo de vida low waste, mas reduzir a nossa produção individual de resíduos – consumindo menos, consumindo melhor, de forma mais responsável e sustentável – é essencial para mitigar o impacto desses mesmos resíduos no ambiente, na nossa saúde e na saúde do planeta. Não é a única via, mas é uma via importante. O livro não é apenas um convite à reflexão, mas é, sobretudo, um convite à ação. Foi escrito para chegar a pessoas que nunca pensaram ou se interessaram sobre o tema e têm curiosidade, querem fazer algo ou querem começar. Foi escrito no intuito de poder ajudar a fazer pequenas mudanças. Até pode ser só uma.
Eu sei, por experiência própria, que a ecologia e o movimento zero waste podem, por vezes, parecer restritivos e radicais, deixando reservas a quem quer mudar, por não saber bem o que fazer, como fazer, por onde começar, por ter medo do erro ou de se sentir julgado e marginalizado por não chegar ao “zero”. Senti, e sinto, tantas vezes, essas mesmas emoções, essa “ecoansiedade”. Nessas alturas, quando mergulho na dúvida e me sinto impotente e envergonhada por estar a falhar – quando continuo a gerar bastante desperdício – lembro-me da frase da Anne-Marie Bonneau (zero waste chef) que me resgata imediatamente pelo seu otimismo e força desse dilema interior: “Nós não precisamos de um grupo de pessoas a praticar zero waste de forma perfeita; precisamos de milhões a fazê-lo de forma imperfeita.” Acredito muito nisso, no poder dos pequenos gestos imperfeitos.
Um estilo zero waste e low impact é necessariamente condicionado por fatores que nem sempre controlamos, que não nos são acessíveis ou que simplesmente ainda desconhecemos (superfícies ou mercearias a granel; a existência de mercados dos produtores; secções comerciais com alimentos biológicos e sem embalagem de plástico; ausência de vontade ou jeito para cozinhar os próprios produtos; falta de tempo ou de espaço para determinadas práticas; ausência de sistemas eficazes de recolha e tratamento de resíduos). O mais importante é mesmo tentar e ir conseguindo, é celebrar as pequenas mudanças. Não há nenhuma fórmula mágica, nenhum guia, nenhum livro que o possa fazer por nós. É dentro de nós que está o caminho e a revolução.
Até ao momento, qual é que tem sido o feedback dos seus leitores? Mostram-se surpreendidos e motivados para uma mudança positiva?
Tem sido extraordinário. Fico profundamente comovida sempre que recebo mensagens e testemunhos sobre as mudanças que estão a pôr em prática depois da leitura do livro. E esse feedback vem de diferentes pontos do país e do mundo (através da versão ebook, também disponível) e de pessoas de diferentes idades. Temos um hashtag criado para acompanhar estas partilhas (#desafiozero) e é uma inspiração perceber o sentido de comunidade e de partilha gerado em torno do livro – porque estamos a fazer o caminho juntos.
Estamos ainda a viver esta pandemia atípica e sem antecedentes. Considera que este tempo poderá, de certa forma, estimular a mudança de hábitos e rotinas, principalmente no que toca à consciencialização da sociedade, perante assuntos que passavam um pouco ao lado?
É impossível olhar para esta crise e não fazer uma leitura ambiental do seu impacto. Num certo sentido, este é um pedido do planeta para revermos o nosso comportamento. E por isso este é o momento de lermos os sinais do tempo e reinventarmos a relação que temos connosco, com os outros, com o mundo. Podemos estar isolados, mas não estamos sozinhos. O combate ao vírus implica o nosso confinamento e um certo sentido de solidão, mas derrotá-lo implica que colaboremos como nunca, que pensemos mais nos outros do que em nós. O vírus está a ensinar-nos a parar, a abrandar, a olhar para dentro, para o que fazemos e para o que somos. Esta aprendizagem da lentidão e do despojamento veio também mostrar-nos a importância dos laços de afeto, de vizinhança e de cooperação. O vírus veio ensinar-nos a amar melhor. Tudo isto pode ser transferido para o ativismo ambiental e para a emergência climática que vivemos. Este é um reset, um abanão global que vai dar lugar ao restart. Recomecemos, pois. Não precisamos de fazer tudo de uma só vez, mas precisamos de começar. Um passo de cada vez, mas a caminho. Recomecemos.
Depois deste lançamento, o que é que espera poder vir a fazer? O que é que gostava de ainda explorar na Maria Granel?
Acredito que o futuro se fará cada vez mais de colaboração, por isso, o meu sonho é chegar gradualmente a mais pessoas, por meio dessa colaboração e cooperação com outros projetos.
Sobre Eunice Maia:
- Fundadora da Maria Granel, em 2015, que se apresenta como a primeira zero waste store e também mercearia a granel em Portugal.
- Autora do livro Desafio Zero (2020).
- Vencedora do prémio nacional Terre de Femmes 2019, da Fundação Yves Rocher para a preservação da biodiversidade.
- Consultora e oradora na área da sustentabilidade (consumo consciente, redução de desperdício, low waste e zero waste.
- Criadora do programa Z(h)ero, um projeto educativo ambiental de redução de desperdício em ambiente escolar e empresarial.
- Autora do prefácio da edição portuguesa do livro Zero Waste Home, de Bea Johnson.
Maria Inês Neto
Editora
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