Pelos Alpes em bicicleta

Já aqui falamos de uma aventura que levou oito amantes do BTT a fazer uma travessia dos Alpes: a Transalp. Agora, deixamos aqui o diário de bordo escrito por um dos membros desta equipa destemida, João Veiga Cruz.

Transalp, pelos Alpes em bicicleta

Tudo começou há 11 meses com a definição do desafio, planificação e treino. O desafio foi elaborado por conta, risco e responsabilidade do grupo. O objetivo de atravessar os alpes desde o seu início na Alemanha, passando pela Áustria e término em Itália parecia ousado, atendendo que ninguém do grupo lá tinha estado e literalmente tudo teve que ser organizado por nós.

Por muita experiência que tenhamos, nada se assemelha à geografia, morfologia e realidade dos Alpes. Nos Alpes, neva no verão e muitos são os dias onde se é confrontado com as quatro estações do ano nos seus extremos: chuva, frio e calor.

Uma das questões que se colocou à partida foi se custaria levar a cabo um desafio deste calibre. Hoje respondemos: o que custa é ter motivação durante o ano para nos prepararmos para algo inesperado e simular condições extremas no nosso contexto. Desde que a preparação tenha sido feita com a máxima responsabilização, tínhamos a convicção que seria mais fácil. E assim foi!

O que é a Transalp? Nada mais que um desafio e travessia a contemplar paisagens dignas de postais, pelas cores variadas, vivas e escalas de grandeza do cenário que desperta os nossos sentidos e que nos marcam para a vida, onde a intensidade da vivência é contínua e até difícil de ser processada dado a quantidade de elementos que prendem a nossa atenção. Costumo dizer que depois de uma verdadeira experiência nos Alpes nada mais fica igual.

Introdução feita, o desafio foi agendado para os dias longos de julho, em sete etapas. Viagem longa de carrinha até a Alemanha, mas isso trouxe-nos a vantagem de perceber as diferenças paisagistas e de organização de cada país, dado que atravessamos a Espanha, a França, a Suíça organizada, cara na alimentação, mas com autoestradas tendencionalmente gratuitas  (40€ de selo ao ano),  e sul da ordenada Alemanha com estradas de excelente piso a serpentear montanhas e vales onde ficamos com a sensação de que nem as ervas daninhas crescem nas bermas e onde as habitações não têm cercas de vedação. Chegados a Garmish, local de partida do desafio, ainda tivemos tempo para fazer um reconhecimento na montanha Zugspitze (a maior montanha na Alemanha). Contrariamente a estereótipos assumidos, para nós, os alemães foram afáveis, simpáticos e prestáveis a cada solicitação, características semelhantes aos austríacos e italianos. Talvez os Alpes influenciem positivamente a sua forma de estar.

Todas as etapas tinham características comuns. Início diário de longas e intermináveis subidas, final em descidas extensas, algumas com mais de 40 km! Técnicas e propícias a velocidades elevadas, muito acumulado diário, mas com paisagens que distraiam qualquer sinal de cansaço.

Sem olhar para o altímetro, fomos aprendendo os efeitos da altitude no corpo e nas paisagens, observando apenas para o que nos rodeia. Na base da montanha até aos 1800m de altitude, as árvores predominam, dando lugar gradualmente a vegetação rasteira, passando a simples erva a partir dos 2000m e a aridez total de pedra e cascalho resultante da erosão na quota de 2400m e neve desde essa altitude.

Durante as etapas, as paragens nos refúgios serviam para experienciar os petiscos típicos de montanha e de cada região, acompanhada sempre com jarros de cerveja. O queijo é o ingrediente historicamente predominante pelas quantidades calóricas que aportam para quem outrora trabalhava e vivia na montanha e, agora, também para os desportistas e amantes da natureza, isto sob a forma de fondue, raclete, tartiflete, crosiflete e outros.

Para maximizarmos experiência, as etapas iniciavam-se bem cedo de forma a poder controlar ritmo de progressão, paragens pausadas e acautelar qualquer imprevisto. Sempre munidos de mochila com equipamento diário obrigatório (impermeável, manta térmica, camisola térmica) independentemente das condições meteorológicas de saída dado a imprevisibilidade e mudanças de tempo que ocorre em altitude.

Ao longo das etapas, a morfologia das montanhas foi-se alterando.

Primeira e segunda etapa, montanhas em estado bruto com glaciares permanentes nos topos. As passagens entre montanhas são feitas pelo “col” (o ponto mais baixo entre duas montanhas), muito deles bem acima de 2500m, onde o silêncio reina, sendo perfeitamente audível os assobios das marmotas e aves de rapina.  A primeira etapa toda foi realizada no parque natural de Karvendel. A primeira metade percorre o parque num vale encaixado entre duas montanhas até ao refúgio KarvendelHaus. Aqui temos uma visão panorâmica de 360º onde a paragem é obrigatória para reabastecer e contemplar o horizonte. O percurso até ao “col” informa-nos que, para além da dificuldade natural da subida, outras se acrescentarão.

Grande parte dos “col” é feita em trekking, havendo mesmo segmentos com a bicicleta às costas, pois a tecnicidade rochosa assim obriga. Os caminhos existentes no “col” são meros trilhos de pé posto, confundindo-se com a morfologia do terreno, sendo apenas percetíveis pela linha traçada no GPS, pois a pouca utilização destas vias não é suficiente nem para vincar bem o trilho… nem ninguém se preocupa em torná-lo clicável.

Nos Alpes, outra característica é que por muito que se suba nunca se chega ao topo, a não ser que façamos alpinismo. Tudo é magnamente grande, onde tudo parece perto, no entanto levando horas a chegar àquele ponto que avistas.

A segunda etapa deixa o parque para entrar em várias instâncias de ski, uma delas aberta todo o ano (Hinterlux). Sentimos nesse dia em como somos vulneráveis e como a montanha se transforma numa fração de minutos. De céu aberto passamos a um clima de chuva forte debaixo de vários pontos de trovoada simultânea. Parar não era opção, dado a falta de abrigo, apesar do nosso bom equipamento. As rajadas de vento gélido com a chuva rapidamente nos deixaram desconfortáveis. Um chocolate quente na instância de ski aliviou o desconforto. A descida foi já feita debaixo de sol e céu azul…

A terceira etapa passa por montanhas com vastos prados e planaltos, aproveitados para a pastorícia de bovinos, caprinos e ovinos. Passámos a ter contacto com populares locais em aglomerados de duas a cinco habitações no máximo, onde os refúgios são apenas uma extensão de atividade, dado que a agricultura e pecuária é, de facto, a sua forma de subsistência.

Na quarta e quinta etapa entrámos nos Dolomitas, montanhas calcárias que sobressaem no horizonte, dado o contraste da luminosidade na pedra, implantados em bosques e verde da vegetação na base. A cor da montanha vai variando consoante a exposição do sol durante o dia. Região de eleição para passeios pedestres, escalada, altamente aproveitado para o turismo.

Na sexta etapa e início da sétima, o cenário transporta-nos para o passado. As montanhas foram outrora palco de grandes e sanguinárias batalhas da primeira guerra mundial. Frequentes são as cruzes e cemitérios improvisados de soldados que descansam de facto em lugares hoje idílicos, assemelhando-se ao nosso imaginário paraíso. Fortificações, trincheiras, postos de comando, inscrições em marcos, fazem perceber a importância estratégica daquela região no tempo da guerra, que presentemente é Itália, mas em 1914 pertencia ao império Austro-húngaro. Curioso que a cultura e língua dominante nesta franja geográfica é ainda o alemão e não o italiano.

O final da sétima etapa é marcado pelo contraste abrupto da montanha com um percurso todo feito em sequência de curvas e contracurvas (“tornantes” em italiano) esculpido em faces verticais, com falésias de cortar a respiração designada “Strada delle 52 Gallerie”, que serviu em tempos de linha de abastecimento e defesa no tempo de guerra e para finalizar faltava a cereja no topo do bolo numa longa e dura subida até ao “Rifugio Altíssimo” a 2060m de altitude, onde avistamos a cidade de Riva de Garda e o enorme lago del Garda a somente  70m de altitude, exemplificando a proeminência da montanha e descida em apenas 15km.

No fim, dois sentimentos: o primeiro, de um enorme orgulho pela proeza, conclusão de um desafio por nossa conta e risco, imagens, vivência, experiência e espírito de equipa e entreajuda. Segundo, o sentimento de agendar rapidamente um novo desafio para manter o nível elevado. Uma vontade em voltar a desafiarmo-nos a nós próprios.

Transalp em números:

750km

24.500 metros de desnível positivo

7 etapas consecutivas

12 dias considerando data de saída e regresso, com um dia de estadia em Chamonix, Garmisch e Riva del Garda.

Gasto calórico total < 60.000kcal